segunda-feira, 13 de junho de 2011

COMPARTILHANDO UMA DESCOBERTA ou UMA ANÁLISE DE A PAIXÃO SEGUNDO G.H.


A PAIXÃO SEGUNDO G.H. foi publicado pela primeira vez em 1964. A autora, Clarice Lispector, embora nascida na Ucrânia em 1920, considerava-se brasileira, chegando ao ponto de afirmar: “eu, enfim, sou brasileira, pronto e pronto”.

Para aqueles que nunca leram o livro a ser analisado faz-se necessário um breve resumo do romance, sinalizando os pontos considerados principais. G.H. é a personagem principal, e a “história” se passa em 1ª pessoa ao longo das 179 páginas que compõem a obra. O texto seria basicamente o relato que ela, G.H., faz da sua experiência de descoberta. Segundo ela, tudo começa pela manhã quando se propõe a arrumar o quarto. Esperando encontrar um ambiente escuro, sujo e bagunçado, surpreende-se ao ver um quarto limpo, arrumado, claro e arejado. A surpresa é maior quando percebe que em uma das paredes no quarto há o desenho de três espectros. Quando observa melhor, percebe que não são nada mais que uma mulher, um homem e um cachorro os seres desenhados em carvão. Ela sabe que a mulher a representa, sabe ainda que sua antiga empregada fizera o desenho, e que esta não gostava dela, G.H.. Mas o momento mais importante é quando percebe que há uma barata no quarto. É a partir deste momento que se inicia a descoberta. São muitas paginas após a percepção de que há uma barata, melhor seria dizer que a grande maioria do livro se passa após este encontro de G.H. com a barata; da mulher com a essência da vida. A personagem passa muito tempo meditando, separando-se das suas concepções, afastando-se de suas ideologias. Essa lenta descoberta chega ao seu cume quando no final do livro, após tentar matar a barata, a G.H. come-a:

O que era pior: agora eu ia ter que comer a barata, mas sem a ajuda da exaltação anterior, a exaltação que teria agido em mim como uma hipnose; eu havia vomitado a exaltação. E inesperadamente, depois da revolução que é vomitar, eu me sentia fisicamente simples como uma menina. Teria que ser assim, como uma menina que estava sem querer alegre, que eu ia comer a massa da barata.

Então avancei. (p. 165)

Seguinte a este acontecimento, chega-se a parte mais impressionante do livro: as descrições em primeira pessoa que Clarice nos proporciona da experiência de G.H.:

Crispei minhas unhas na parede: eu sentia agora o nojento na minha boca, e então comecei a cuspir, a cuspir furiosamente aquele gosto de coisa alguma, gosto de um nada que no entanto me parecia quase adocicado como o de certas pétalas de flor, gosto de mim mesma – eu cuspia a mim mesma, sem chegar jamais ao ponto de sentir que enfim tivesse cuspido minha alma toda. (p. 166 e 167)

Para analisar Clarice é preciso não apenas saber que ela é classificada como escritora do período chamado Modernismo (terceira fase do Modernismo, para ser específica), porque tais classificações em Literatura não significam muita coisa, são classificações puramente didáticas. Embora Clarice seja uma escritora brasileira, seus livros não encontram outros similares no país. Comumente é assemelhada a Virginia Woolf (teremos a oportunidade de analisar escritos virginianos) e James Joyce, embora não gostasse destas comparações.

Para entender um pouco de A PAIXÃO SEGUNDO G.H., é preciso saber que é um escrito introspectivo, afinal a personagem compartilha com o leitor um momento de descoberta interior. É importante ainda perceber que embora o livro seja em 1ª pessoa, a G.H. não se direciona ao leitor. Seu ouvinte é uma mão que ela precisa segurar para continuar escrevendo, entretanto é uma mão sem corpo, uma mão decepada. E mais adiante, lá no final do livro, quando G.H. faz suas descobertas sobre o amor, percebemos que a mão que ela segura é mentalmente a mão do seu amado:

Ah, meu amor, não tenhas medo da carência: ela é o nosso destino maior. O amor é tão mais fatal do que eu havia pensado, o amor é tão inerente quanto a própria carência, e nós somos garantidos por uma necessidade que se renovará continuamente. O amor já está, está sempre. Falta apenas o golpe de graça- que se chama paixão. (p. 170)

Embora aqui neste romance nós percebamos uma ausência muito grande de fatos, ou seja, quase não há história, podemos perceber um ambiente, e poucos personagens (basicamente G.H. e a barata). É como se a personagem G.H. “vomitasse” toda a sua descoberta em palavras. A barata (que deve ser considerada uma das personagens do livro!) não deve ser vista apenas metaforicamente. Ela é personagem real no romance, e deve ser vista como tal. Participa da história como uma barata normal. Entretanto, tem seu papel metafórico no livro, uma vez que possibilita que a G.H. ultrapasse o plano simples de pensamento e chegue a sua descoberta intima. Assim, podemos dizer que a barata é personagem real e metafórico do livro. Dentro do plano metafórico, não há como colocar a barata, ser pré-histórico na visão da personagem, como a representação de uma coisa apenas. São tantas metáforas, tantas representações, tantas possibilidades de descobertas que proporciona, que de maneira alguma eu poderia mencioná-las todas aqui nesta simples e modesta análise. Não é por menos que o livro A PAIXÃO SEGUNDO G.H., é considerado a obra-prima de Clarice Lispector, e após escrevê-lo chegou a afirmar que achava que sempre estavam querendo algo grandioso dela.

Entretanto, não se pode pensar que é uma tarefa fácil entender o que Clarice Lispector quer passar com essas descobertas de sua personagem. Um exemplo é a sua maneira impar de entender a humanidade e inumanidade. Para ela, há os seres inumanos, como a barata, que vêem ao mundo e são capazes de cumprir seu ciclo sem errar, justamente porque são inumanos, porque não possuem liberdade de escolher seu destino. Entretanto nós humanos somos “ensopados” de humanidade, temos “liberdade ou não de cumprir nosso fatal” (p.124). E é como se a humanidade que há em nós seja a causa de nos perdermos.

Clarice disserta sobre vários temas, como a humanização(“A humanidade está ensopada de humanização, como se fosse preciso; e essa falsa humanização impede o homem e impede sua humanidade” [p.158]), uma visão de Deus (“Quanto mais precisarmos, mais Deus existe. Quanto mais pudermos, mais Deus teremos”[p.150]) e a morte (“A vida é tão continua que nós a dividimos em etapas, e a uma chamamos de morte”[p.64]).

Estas são algumas descobertas. Mas, a idéia principal presente no livro, que é necessário a destruição de um mundo para o surgimento de outro, a libertação de toda uma estrutura para se chegar ao inicio, é a motivadora de todas as descobertas, embora não seja em todo fácil perceber:

G.H. vivia no ultimo andar de uma superestrutura, e, mesmo construído no ar, era um edifício solido, ela própria no ar (...) No desmoronamento, toneladas caíram sobre toneladas. E quando eu, G.H. até nas valises, eu, uma das pessoas, abri os olhos, estava – não sobre escombros pois até os escombros já haviam sido deglutidos pela areia - estava numa planície tranqüila, quilômetros e quilômetros abaixo do que fora uma grande cidade. As coisas haviam voltado a ser como eram. (p. 67 e68)

Enfim, é um livro complicado, que merece uma leitura lenta e atenciosa. Necessita de uma mente madura:

Aquelas que sabem que a aproximação, do que quer que seja, se faz gradualmente e penosamente – atravessando inclusive o oposto daquilo que se vai aproximar. Aquelas pessoas que, só elas, entenderão bem devagar que este livro nada tira de ninguém. (palavras da autora em uma espécie de prefácio)

Eu não diria que ao fim do livro a personagem se encontra. Eu diria que a G.H. passara a entender um pouco mais sobre si, mas não chega à completude: “ A vida se me é, e eu não entendo o que digo” (p.179). Ela apenas sai do meio do caminho, onde sempre estivera outrora, e enfim dá o primeiro passo no seu começo (p.178).

A PAIXÃO SEGUNDO G.H., é mais uma das buscas de Clarice da essência humana, entretanto não digo que ela desenhou essa essência por completo, não ousaria dizer, até porque a própria Clarice durante a escrita compartilha destas descobertas (“A mim, por exemplo, a personagem G.H. foi dando pouco a pouco uma alegria difícil, mas chama-se alegria”[ palavras da autora em uma espécie de prefácio]). Descobertas que não se encerram com o findar deste romance, continuam em outros como UMA APRENDIZAGEM OU O LIVRO DOS PRAZERES.

E faço questão de terminar esta análise como termina o livro: ------


Paula Carine

________________________________________

Aí está a análise! Gostaria que não tivesse ficado muito extensa, entretanto me decidi por colocar fragmentos do livro (o que me deu um pouco mais de trabalho!), com o intuito de facilitar a compreensão daqueles que não leram o romance. Deixo agendado para semana próxima a resenha do livro A COR DO INVISÍVEL do Mário Quintana. Acredito que será gratificante adentrar neste mundo "quintaneano".

Nenhum comentário:

Postar um comentário